Grainhas de Kiwi

Somos três amigas que já estão fartas de falar ao telemóvel e como tal resolvemos criar este blog (uma experiência nova para nós) onde pretendemos partilhar convosco os nossos pensamentos, o que gostamos, o que odiamos, o que nos faz comichão, o que nos faz sorrir e o que nos faz chorar. Enfim, queremos entrar em contacto com todos vós através deste modelo de interacção. Na realidade, temos é medo de perder o comboio da tecnologia.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Sophia de Mello Breyner Andresen


Fez no passado dia 6, 87 anos que nasceu uma das mais importantes poetisas portuguesas do sec.XX. Não queria deixar de prestar aqui, neste cantinho uma pequena homenagem a quem tanto gosto.
Aproveito para partilhar convosco um poema em prosa, que inicialmente foi um recado que a Sophia deixou à empregada da sua casa de férias em Lagos. Depois de o retocar, surgiu esta maravilha (dos poemas mais lindos que li).

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

5 Comments:

At 12:14 da tarde, novembro 12, 2006, Anonymous Anónimo said...

Bela fotografia e belo poema! Pena que hoje não é sábado para tentar encontrar nas frutas e hortaliças resquícios das cores e sabores que se misturam nas palavras. Da póxima vez vou seguir as sombras sobre os muros e paredes e vou ao mercado!

 
At 11:00 da manhã, novembro 13, 2006, Blogger Soft said...

É dos mais belos textos alguma vez escrito em língua portuguesa! Daqueles que me deixam com uma sensação de êxtase, de maravilhamento perante uma criação sobrenatural de que apenas muito pouco seres humanos são capazes. Sophia é assim, das coisas mais simples, faz milagres linguísticos e de significado. Algo que não acontece agora, em que quase tudo o que se produz é apenas forma e nada de conteúdo. Outro texto magnífico que me dá sensação semelhante, é o discurso de aceitação do prémio Nobel de Saramago. E também a introdução de História do Cerco de Lisboa, em que a descrição do nascer do dia na cidade quase se saboreia! E que tal Bach, na música? E Rodin? Enfim, os deuses descem por vezes à terra e iluminam alguns humanos de alma e coração nobres...

 
At 1:07 da tarde, novembro 13, 2006, Blogger Psipsina said...

Parabéns amiga Sofia pelo maravilhoso texto que escreveu.
Obrigada e faça favor de escrever mais umas coisinhas inspiradas como esta, no blog.
beijos

 
At 10:10 da tarde, novembro 13, 2006, Blogger Soft said...

Infelizmente não tenho conseguido postar aquilo que queria (tu sabes o quê). Até porque estou de momento a residir em Lisboa, devido a nova doença do Grainha-Mor (amigdalite com febre de 39,5) que me forçou a precisar da ajuda dos papás para ver se consegui dormir uma noite descansada, à falta de marido para tratar da criança... Enfim, mini-tragédias do quotidiano familiar. Aqui não tenho as fotos.

 
At 4:45 da tarde, novembro 14, 2006, Anonymous Anónimo said...

Bem escolhido, não sou muito dado a poesias, mas li "Mar" mas daí houve frases que sem querer nunca mais esqueci"Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar" e esta sinto-a:"Metade da minha alma é feita de maresia".Lindo retrato em forma de poema.

 

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